Cada dia em Moçambique é um dia especial. E se achamos que cada dia não pode suplantar o anterior, é frequente estarmos enganados.
Cada chegada é brindada de danças, alegria e muita gratidão. Tanta gratidão que me faz transbordar de emoção e me comove o quão pouco que por vezes sentimos que fazemos. Nas suas danças guerreiras os pequenos expressam a sua forma física, fingem caras zangadas e ganham um novo gosto pela escola.
A escola começa meio silenciosa com as crianças já dentro das aulas à hora que chegamos, apenas com exceção do grupo que nos veio receber. Perguntamo-nos se terá menos crianças, mas rapidamente a resposta se inverte. Apesar de ter tido uma redução de classes, com a 7ª Classe a passar para a Escola Secundária vizinha, o número de crianças não para de aumentar. São 750 crianças servidos por uns meros 10 professores. Faço as contas mentais, mas procuro evitar o resultado. Há professores a fazer 2 turnos para atenderem a tanta necessidade. Com ensinar 70 crianças de 7 anos que se sentam numa sala de aula pela primeira vez?
O silêncio da escola convida-nos a sair para visitar famílias. Nem sempre temos o tempo necessário para o fazer nas visitas de Manjangue, pelo que é com rapidez que aceito o convite. Visitar as famílias tem sempre o seu quê de místico, ao caminharmos por caminhos daqueles que pensamos só existir em fotografias, apesar dos 20 anos do terreno. Pequenitos à beira das casas, roupa estendida, meninas a preparar a chima. Visitamos casas que tivemos a felicidade de construir e avaliamos as condições. Como avaliar as condições de uma casa tão diferente daquelas que nós vivemos? A família está feliz, a casa está limpa e até já se vê uma puxada de eletricidade para alguns eletrodomésticos. Não há tempo a perder e continuamos pelos caminhos.
No regresso a Santa Luísa começa o burburinho. As panelas borbulham com a chima e o frango, a alimentação para o dia de hoje. No início parecem ser pouco, mas sem demora começam a aparecer as crianças. Turma a turma correm para a fila com a pressa de ter a sua refeição. Sem pensar muito, mas pensando, olhamos para ver para quais esta será a única refeição do dia. A cor enche a escola e os barulhos intensificam-se. Enquanto nos inspiramos no burburinho das crianças conversamos sobre sonhos, dificuldades, mudança. Queremos voltar a ter alimentação 5 dias por semana, para não termos de 1x por semana dizer às crianças que terão de ir para casa de barriga vazia. Queremos mais professores para que seja possível ensinar as crianças com qualidade. Queremos carteiras para que não se amontoem nas salas. Queremos tirar as crianças de 4 e 5 anos que deambulam pelas ruas e dar-lhes uma pré-escola. Paramos e olhamos a sangue frio. Como priorizar quando tudo é tão importante?
Chega a hora de visitar o nosso centro de dia. De camisas rosa vibrante somos recebidos com mais um cântico de gratidão. As cores e cantigas escondem o destino que foi traçado para estas crianças, doentes de HIV. No centro tem um espaço onde podem ter uma vida diferente, refeições sólidas, medicamentos e apoio para desenvolverem atividades e estudarem. No centro, estas crianças diferentes pela positiva, pelo carinho e atenção que aí recebem. Cortamos um bolo de celebração e partilhamos um almoço. Quase que esquecemos porque estamos ali. Num ambiente de antecipação visitamos a nova sala de artes. O que encontramos bate as expectativas, com a nova Irmã Aida que acaba de chegar a dar toda uma nova vida às atividades do Centro e incluindo também as crianças Apadrinhadas. Neste espaço a criatividade é rainha e criam-se produtos que sabemos que vão aguardar de Moçambique a Portugal. Saímos com a promessa que vamos angariar fundos com os mesmos e assim permitir a sustentabilidade desta atividade. Queremos ficar e juntarmo-nos aos artesãos, mas o dia tem de continuar.
O trabalho não se faz sem equipa, pelo que o dia continua com a fantástica equipa de Santa Luísa de Marilac, dedicada às crianças da Um Pequeno Gesto. O Mano Leonildo, novo coordenador e contínuo aprendiz de novos conhecimentos. O Mano Orcidio, conhecedor de cada criança, história e família. O Mano Gerónimo, sempre pronto a animar as crianças e criar com elas uma boa festa, a par de uma boa conversa. O Mano José, que abraçou o novo desafio de dinamizar o centro de dia. Trocamos experiências, partilhamos dificuldades. Juntos somos mais fortes.
O dia termina com as nossas Parceiras invencíveis, as Filhas da Caridade de Santa Luísa de Marilac. A Irmã Gilda, líder do grupo. A Irmã Felizarda, que agora abraça a Diretoria da Escola e coordena os programas de alimentação e apadrinhamento da Um Pequeno Gesto. A Irmã Aida que está acabada de chegar ao Centro de Dia mas traz consigo de Nampula muita vontade de criar e motivar as crianças. A Irmã Dalva que apesar de não estar num projeto da Um Pequeno Gesto, é uma grande fã do trabalho que fazemos junto nas comunidades. Partilhamos gargalhadas, conversas sérias e momentos de música. Dou por mim no batuque, já tinha saudades. A noite caiu. Está na hora de partir.
Ainda dizem que em Manjangue é difícil sonhar. Para nós, olhamos à volta e cada dificuldade é um sonho. Basta alterar a maneira como o olhamos.