Na UPG os dias são feitos de pequenos contratempos e grandes alegrias.
Há muitas grandes alegrias. Sempre que mais uma criança passa de ano, uma menina não desiste de estudar porque engravida cedo, uma mamã deixa um pequenino protegido numa pre-escola nossa para ir trabalhar e receber míseros rendimentos para a familia, sao dias felizes. Sempre que padrinhos nos dão uma palavra amiga encorajadora e nos mostram a felicidade de ter uma criança a quem chamam “ a sua” sao dias felizes. O Belide Jorge Ubisse é uma entre tantas as quase 2´500 crianças que a UPG apoia por ano. É fácil perdermo-nos nos números e nomes de tantas carinhas felizes e tristes ao mesmo tempo, com fome mas com esperanca, com corpos doridos de anos de carência mas de olhos brilhantes de esperança como toda a criança a crescer. Resistentes. Resilientes. Pequenos heróis.
Mas com o Belide não me ficou só mais uma cara. Ficou-me um menino que mesmo órfão dos pais, era uma dupla vitima com a pequena irmã Maria quando ambos cresceram muito amigos mas infectados por HIV. Estava connosco desde 2011, 11 aninhos apenas feitos, casa miserável, saúde lamentável. Entrou no nosso Centro de Dia HIV há quase 4 anos enquanto estudava na escola de SLM. Continuava a viver na sua casa básica de matope feita com 10 chapas e uma divisão apenas, olhado por uma tia cuidadosa mas doente e pelo irmão mais velho, chapeiro de “autocarro”, sempre ausente a trabalhar mas que lhe tinha muito carinho.
Todos os trimestres, entre os 30 meninos seus companheiros no Centro, era talvez primeiro de quem eu procurava as notas. Porque no meio da dificuldade e da dureza, me encantava o menino melhor aluno contra todas as probabilidades. Quis conhece-lo em presença, vi-o a escrever com cuidado à madrinha Filipa, descobri o seu bom português, a sua caligrafia firme, uma cabeça com um futuro. “O nosso Belide vai ser Bolseiro Universitário da UPG!” dizíamos orgulhosos. No ano passado começou a faltar aos cuidados diários do Centro… na sua adolescência, ja queria ficar no recreio da escola “com os grandes”. Fizemos um campo de futebol no Centro, a pensar em meninos frágeis como ele, a quem cativámos de novo. Vinham para correr atras de uma bola e recebiam os nossos cuidados medicos e boa alimentação. E voltavam a estudar, a sua única solução. “O HIV não vai vencer! Olhem o Belide!”.
Os pequenos contratempos do dia a dia da UPG parecem grandes quando aparecem. São comunicações com o terreno que tardam a chegar, sao padrinhos que nos desaparecem sem pagar, sao pneus furados pelos técnicos UPG em caminhos de terra quando so queríamos chegar a famílias doentes… sao semanas como esta que passou, desgastada a preparar emails sobre emails para respeitar dados de privacidade europeia. Sao problemas de gente grande.
Mas hoje morreu o Belide. Há dois meses que nos faltava um pouco demais, andava adoentado, queixava-se, era internado no Hospital do Carmelo. A noticia chega do hospital longínquo e sentimo-la aqui tão perto. Pedimos clareza se era uma tuberculose mais aguda, que aflige tanto as nossas crianças do Centro de Dia, se era outra fraqueza desconhecida. Mas, na realidade, já não interessa… Interessa que o nosso menino futuro bolseiro, uma cabeça de ouro, o irmão ternurento da pequena Maria, não está mais cá.
Interessa que ja não podemos olhar para o Belide. Interessa o esforço que financiadores fazem para por de pé os nossos projectos, as horas de trabalho ingrato que os parceiros UPG gastam no terreno a lutar contra uma realidade obstinada, interessam os anos da UPG a tentar salvar pequeninos vulneráveis. E não podemos baixar os braços, porque o HIV não vai vencer. A falta de educacao e oportunidade não vai vencer. A pobreza não vai vencer. Porque um dia de cada vez, outros Belides vao ser nossos Bolseiros, com a grande ajuda dos amigos e padrinhos da UPG. Mas hoje na UPG os contratempos já não parecem tão pequenos nem as alegrias tão constantes. Hoje morreu o Belide. Hoje não é um dia feliz para a UPG.
mana Patricia Acquaviva, UPG
Um texto muito bonito que nos aproxima das crianças para quem os nossos donativos são tão importantes. Haverá outros Belides bolseiros e talvez a memória deste Belide que lá não chegou nos incentive a apoia-los.